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Uma Garota de Muita Sorte

Para todas as mulheres, que um dia a gente não precise mais contar com a sorte.


Quantas vezes você, mulher, já foi assediada enquanto caminhava pelas ruas?


Quantas vezes você já ouviu termos, como: gostosa, delícia, fiufiu, ôh lá em casa, que bundão, que peitão, eu comia [...] quantas vezes, o assediador, mesmo sem emitir sons, conseguiu fazer com que você se sentisse constrangida com um olhar?!


São diversos os comentários e olhares desrespeitosos que nos envergonham e nos fazem questionar: será que a culpa é minha? Será que eu estou vestida de forma vulgar?


Em 2018, o Datafolha realizou uma pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o estudo revelou que mais de 1/3 dos brasileiros acredita que “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”. Apontando ainda que 30% da população afirma: “mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”.


Mas será que a culpa do assédio ou estupro é da roupa ou da conduta da mulher?


A exposição "A culpa é minha?", exibida em Bruxelas, na Bélgica, apresenta as roupas que diversas mulheres estavam utilizando no momento que foram vítimas de estupro.

Exposição 'A Culpa é Minha?', mostra roupas usadas por vítimas de estupro

O nome da exposição é ‘A Culpa é Minha?‘, fazendo referência ao sentimento de culpa, que as vítimas costumam carregar após sofrer assédio ou violência sexual.


Liesbeth Kennes, que faz parte do grupo de apoio a vítimas de estupro CAW East Brabantuma e uma das organizadoras da exposição, destacou em entrevista à BBC: "O que você percebe imediatamente quando vem à mostra: todas as peças são completamente normais, roupas que qualquer um usaria", afirma.

Reforçando: "Só há uma pessoa responsável, só há uma pessoa que pode prevenir o estupro: o próprio estuprador".

No Brasil, estima-se que aconteça um estupro a cada 11 minutos - a subnotificação dos casos é grande e somente 10% deles são levados à polícia, segundo o Ipea. São 50 mil casos registrados por ano, mas a estimativa é que existam pelo menos 450 mil.


A "culpabilização da vítima" ainda é um problema sério em casos de violência sexual. Fazendo com que muitas mulheres questionem se podem ter sido, de alguma forma, responsáveis pela agressão que sofreram por conta de alguma atitude ou de algo que estavam vestindo. Vítimas são pressionadas, desacreditadas, humilhadas e até obrigadas a conviverem com a impunidade de seus agressores. E é aí que a trama "Uma Garota de Muita Sorte" ilustra o quão próximos estamos deste crime e o quanto a impunidade é recorrente.


O livro que deu origem a produção da Netflix, Uma garota de muita sorte, nos apresenta Ani Fanelli, uma mulher que aparentemente possui muita sorte: ela vive em um luxuoso apartamento, trabalha em uma das mais influentes revistas femininas do país, possui um guarda-roupa impecável, contendo diversas marcas idolatradas pela alta sociedade. Além disso, Ani está prestes a se casar com o seu noivo de 'sangue azul', estando a um passo de viver a almejada 'vida perfeita'.


No entanto, Ani possui um segredo: por trás da fachada de sucesso, um doloroso crime assombra a sua vida desde os anos de estudante na prestigiosa escola Bradley, na Pensilvânia.


[Alerta Spolier}


Ani foi vítima de um estupro coletivo.


O filme reverberou em meus pensamentos durante dias. Fiquei pensando no quão pesado é o fardo de ser mulher.

E no quanto Ani representa todas nós.


Ela nos representa na tentativa de caber em lugares que seriam bons para mulheres. Na necessidade de ser gentil, agradar ao outro, se diminuindo para se encaixar.


Logo no início do filme, Ani diz: “Sou uma boneca de corda. Vire a chave e eu falo exatamente o que você quer ouvir.”

Somos ensinadas desde muito jovens a falar o que os outros querem escutar. Afinal, um menino com opinião é assertivo, sabe se posicionar. Já uma garota com opinião comumente é apontada como uma “pessoa difícil de lidar”.


Ani tenta se encaixar em roupas, lugares, pensamentos e opressões. Revelando ainda o quanto o ambiente familiar também pode ser preocupante para a nossa saúde mental: a mãe de Ani sempre falou sobre o seu corpo, com pitacos relacionados aos seus seios, ombros, gordura abdominal, entre outros. Escancarando a pressão estética que mulheres sofrem desde sua juventude.


Este ano (2022), um estudo da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), identificou que o ambiente familiar é o mais hostil em relação a episódios de constrangimento por conta do peso.





[Alerta Conteúdo Sensível}


Infelizmente Ani também nos representa como vítima de assédio e estupro; vítima da violação de seu corpo e dos machismos de nossa sociedade.


Ani fora dopada, estuprada e culpabilizada. Era a garota bêbada em uma festa de meninos, com o seu histórico de saias curtas, como poderíamos culpá-los?!


Ani lembra uma amiga que foi trancada em um quarto por um garoto comprometido, que abusou dela. Ani lembra uma colega de classe que foi dopada e violentada por 8 garotos, que aos risos contavam como fizeram ela ficar com todos. Ani também traz memórias que vivi.


Quando eu tinha 8 anos, um homem se masturbou próximo ao local onde eu estava. Aos 21, o fato se repetiu: eram 20h, eu estava aguardando o ônibus com uma amiga. Local semi iluminado, mas movimentado, situado no centro da cidade.


Ao lado do ponto de ônibus, um posto policial (que estava ativo no papel, mas na prática, não funcionava há mais de 5 anos). Foi quando um homem se aproximou, percebemos que ele insistia em uma aproximação. Quanto mais nos afastávamos, mais próximo ele chegava, então constatamos que ele estava se masturbando. Gelamos! O medo e pânico foi inevitável. Então tivemos muita “sorte”, pois, outro homem ao visualizar a cena gritou com o abusador, que saiu correndo pelas ruas.


Eu não sei para onde aquele criminoso seguiu, mas sei que nós, mulheres, seguimos. Seguimos nos escondendo, nos esquivando, nos culpando, chorando; rezando e lutando para que o direito de ir e vir não fique restrito ao papel, seja incluído em nosso cotidiano.

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